Quem é Deus e Por Que Diabos a Lei?

Se não se importa com teologia, pule esse parágrafo. Antes de começar, vou usar umas palavras grandes e sonoras para esclarecer e guiar a leitura de quem se achar inclinado e me condenar ao inferno eterno ou aniquilacionista pelas entrelinhas do texto. Não sou marcionita, gnóstico, unitarista ou universalista - mas se quiser se sentir melhor me chamando assim, à vontade. Confesso e professo cada palavra do escrito mais importante e fundamental da tradição cristã, o Credo de Niceia. O que não sou (mais) é biblicista ou adepto à inerrância ou perfeição textual. Acredito que os primeiros cristãos não eram e nem os apóstolos. Também não brinco mais na gangorra do "é ou contém". Escritura é uma coisa, Logos é outra. A Palavra é o Logos, e Logos é Jesus. 


É interessante perceber, depois de reler a bíblia toda, que Jesus não tirava sua doutrina de Deus da bíblia, mas tirava de si mesmo. Ao invés de apontar para a Torah e dizer que Deus era assim, Jesus apontava para si mesmo e dizia isso. Ao contrário do que se pensa, a Palavra de Deus não é a bíblia, é Jesus (João 1). Repare que não foi a Moisés (Lei) nem Elias (Profetas) que o Pai mandou dar ouvidos, foi a Jesus, seu perfeito embaixador. O que os judeus tinham por Deus era bem diferente do que Jesus tinha por Deus. 


A doutrina bíblica dos judeus dizia que Deus era santo demais e quis afastar de seu templo os doentes, imperfeitos, menstruadas e gentios. Ela dizia que sua presença não tolerava imperfeição. Tudo era separado, comidas não se misturavam, tecidos e roupas não misturavam, gêneros não socializavam, raças não se misturavam, culturas não conversavam: o sagrado e o profano eram divididos por um monte de pedras e sangue na areia. Daí vem Jesus e abraça gente com doença de pele, conversa com mulheres sozinhas, almoça com traidores, elogia a raça inimiga, perdoa assassinos não arrependidos e, seminu, lava os pés de gente pobre. 

Na doutrina bíblica do judaísmo, Deus prefere matar. Na doutrina de Jesus, Deus prefere morrer. O escândalo do cristianismo primitivo (pré-constantino) não foi dizer que Jesus era como Deus, mas que Deus era como Jesus. Dizer que Jesus é como Deus pressupõe uma teologia de atributos a respeito de Deus e então eleva Jesus ao mesmo patamar: Deus é x, y e z, então Jesus também deve ser. Mas quando eu digo que Deus, o termo mais carregado de definições da nossa história, é como Jesus foi, ah, isso é escandaloso. Isso é redefinir Deus. Se alguém perguntasse a um platonista ou pitagórico da época como Deus era, receberia uma resposta muito sofisticada. Já se perguntasse aos primeiros cristãos, ouviria algo como "você se lembra daquele nazareno crucificado de que se fala tanto? Então." 

Fiz questão de colocar pré-constantino em parenteses para acentuar o fato de que a imagem de Jesus mudou depois que o imperador se converteu - literalmente, a imagem. Enquanto seita do judaísmo, o cristianismo representou Jesus como um pastor de ovelhas, um sofredor humilde, depois da conversão do imperador, Jesus se tornou parte da realeza. Pois, é claro, nunca o Senhor seria representado em menor prestígio do que o imperador. Procure no Google representações artísticas de Jesus antes e depois de constantino. Essa mudança na arte reflete muito sociologicamente. 

Em algumas doutrinas da Torah, Deus punia o pecador e impedia o mal. Na doutrina de Jesus, Deus redime o pecador sofrendo o seu mal. A doutrina de Deus que Jesus ensinou não começa com atributos e prerrogativas eternas, começa com o caráter do Messias crucificado. 

Quando Jesus disse que veio cumprir as escrituras, talvez não quis necessariamente dizer que veio para demonstrar a veracidade, literalidade e inerrância textual. Cumprir não quer dizer provar. Talvez ele quis dizer exatamente só isso, cumprir. Ele veio cumprir com suas demandas: ela queria sangue, Jesus deu sangue. Ela queria sacrifício, Jesus ofereceu sacrifício. Ela queria perfeição, Jesus deu perfeição. Talvez Jesus tenha vindo sofrer todas as atrocidades que colocaram na boca de Deus para que parássemos de demandá-las como requisito ao perdão e apenas perdoássemos. 

Jesus disse que a Torah não passaria em branco nem seria anulada, mas seria cumprida até a última letra. E foi. Ela queria a morte do cordeiro sem mácula e a teve. Ela queria um bode expiatório e o teve. Jesus foi o cordeiro de Deus e não o cordeiro para Deus. Sacrificamos um cordeiro que Deus nos deu e não um cuja morte ele precisava. Deus não precisa de sangue de boi ou de vaca (Paulo), Deus perdoa porque Deus é bom. Quem precisava ver sangue era a gente, não Ele. A necessidade da morte e da punição como sistema teológico ortodoxo só acontece dentro da tradição protestante, principalmente no sistema calvinista, que tem suas raízes em Anselmo (Cur Deus Homo), antes disso, os sistemas soteriológicos eram bem, bem diferentes. 

Sacrifícios para apaziguar divindades são muito mais antigo do que Abraão. A história da religião demonstra que sacrifícios de animais e seres humanos para expiar culpa e conseguir perdão dos deuses é um fenômeno muito antigo e faz parte das religiões, mas não do Deus de Jesus. Nós criamos religiões que queriam sangue, inimigos em comum e sistemas de expiação. Deus disse ok e nos deu a vítima perfeita, que depois de moída pelo sacrifício humano, emperrou as engrenagens da religião sacrificial e expôs sua ineficácia de lidar com o pecado. Sangue de boi e de vaca não tira pecado (Paulo), perdão sim. Perdão é dom da graça, e isso não vem do sacrifício, mas de Deus (Paulo). Acabaram os sacrifícios! Deus não quis sacrifícios, nós queríamos. Deus cumpriu a promessa que fez a Abraão e proveu o sacrifício que substituiu a morte de Isaque, que nossas religiões demandavam.

Foi o sacrifício que acabou com os sacrifícios, e não porque foi eternamente suficiente, mas porque expos a ineficácia e maldade que o sacrifício é. 

Jesus cumpriu a lei e suas demandas de sangue, terror e morte. Essa, depois de cumprida, serviu para apontar àquele que a cumpriu. Mas veja que nada disso significa que ela era perfeita ou revelada por Deus. Deus nem quis sacrifício algum (Jeremias 7:22), nem do povo nem de Abraão, a quem disse "não machuque o menino". Perdoou porque perdoou. A demanda do sangue para o perdão (Hebreus) é da lei, não de Deus. Acredito que a tradição teológica que hoje ainda tenta sistematizar textos tão distintos e de tantas vertentes tenta o impossível e ignora o simples: Jesus é a Palavra, e devemos ler a bíblia através de Jesus e nunca Jesus através da bíblia. 

Jesus expôs a bibliolatria dos hebreus antigos e redefiniu Deus de acordo consigo mesmo. Jesus é a Palavra de Deus, a bíblia é sua testemunha. 

Guilherme Adriano 


Comentários

Unknown disse…
Teoricamente correto em partes. No entanto, não se pode negar a bíblia porque ela, desde o início revela Jesus. A bíblia mostra a natureza pecaminosa do homem e as tentativas de regeneração que só veio através de Cristo.
Anônimo disse…
O que é credo de niceia? Pode explicar melhor?