A Cabana e Deus

Deus pode se apresentar aos homens como arbustos em chamas para Moisés, em nuvens e pilares de fogo a Israel, como andarilho para Abraão, como um encrenqueiro lutador para Jacó, como um fedido pastor de ovelhas nos Salmos, como Luz, como Leão, como Cordeiro de sete olhos e sete chifres, como uma Pomba, como um Papai louco por seu filho rebelde e até como um judeu baixinho, pobre e pacifista. Esse judeu narigudo de pele escura, que provavelmente se parecia com um refugiado desses que a gente odeia tanto, já foi representado na arte como um europeu de olhos azuis nada másculo, de barba e sem barba, cabeludo e de cabelo curto, com roupa e sem roupa. Já teve suas versões orientais de olhos puxados e também de monge indiano. Já foi pintado com doenças de pele, sendo torturado, ensanguentado, com chagas nojentas e esquelético. Mas, se representar Deus como uma mulher (ainda mais negra!), aí é heresia - e heresia é inferno sem churumelas. Deus nos livre de Deus ser ela e não ele até que por um segundo! Deus pode ser bicho, pode ser planta, pode ser elementos da natureza, pode ser homem (até três deles!), mas mulher não. Não, não, não. Ainda fica mais complicado quando essa negra quer incondicionalmente reverter o coração do assassino e salvá-lo (como na história do livro). Representar Deus como uma mulher não é heresia muito menos sacrilégio. Heresia é pensar que Deus se ofende em pensar que ele (por falta de um pronome neutro) é ela. 

Apesar de literariamente achar A Cabana um livro clichê em termos de narrativa e apelo a casos extremos, teologicamente achei interessante, bem pesquisado, criticando ídolos da teologia reformada de maneira imaginativa. Há uma camada do livro que só dá para apreciar se interessando muito por teologia e tendo um mínimo de cabeça aberta para se engajar com as artes de maneira não-iconoclasta. Acredito que A Cabana sofre hoje o preconceito que Nárnia sofreu em seus dias. De longe estou equiparando as obras, mas há um preconceito highlander na cristandade que de tempos em tempos se levanta contra a arte que não entende e expurga ao inferno tudo que não aprecia. Porque, claro, na cristandade, não gostar é o mesmo que não ser bíblico. 

Leia Nárnia, leia A Cabana, leia tudo o que quiser, o Index Prohibitorum não é mais lei. 

E vamos lembrar que quem começa proibindo (ou desencorajando) as artes às vezes acaba metralhando cartunistas. 

Guilherme Adriano


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