A Carne e o Espírito



O que me atormenta mais não é o que faço ou deixo de fazer, mas o que desejo fazer e deixar de fazer; mais perturbador do que se acidentar com seus desejos enganosos é querer se acidentar com eles. O que diríamos de um homem cuja imaginação é atormentada pela engenhosidade da maldade humana? Que é miserável; que sofre agora as consequências de alimentar sua imaginação com coisas odiosas, violentas e imorais. Mas o que diríamos de um homem que deseja se perverter; que faz vista grossa; que propositalmente abaixa sua guarda para ser golpeado pela imundícia de seus desejos? Tal homem é demente! Esse demente somos nós, cristãos, que brincamos de amnésia para pecar.

Sob a perspectiva cristã, o ser humano é miserável por sua condição de pecador, mas felizardo pela Graça; desventurado por desejar o indesejável e louvar o odioso, mas feliz por ter um Deus que o ama.

Onde moro, geralmente quando saio à noite para comer uma porção de batatas fritas que me façam ir à Glória mais rápido, é comum ver mulheres levando suas virilhas para dar uma volta no bar e homens comprando sexo com cerveja, tudo enquanto banham seus olhos com o sangue do coliseu pós-moderno (campeonato de UFC). Violência, promiscuidade e torpor, são tais que movem a vida universitária. Ironicamente, gozando a violência, querem paz no mundo; não querendo compromisso, querem um relacionamento. Também se embriagam para ficar no controle de sua diversão. Ou seja, louvam aquilo que não é louvável e ardem em desejo pelo indesejável. Dessa maneira, todos amam e obedecem a Deus, mas de maneira contrária: amando o que Ele odeia e odiando o que Ele ama. E por essa condição, somos miseráveis.

Aliás, devo ser honesto com minha consciência: há pouco pequei. Na madrugada passada deliciei meus olhos com a surra que Sonnen levou de Anderson. Minha carne banqueteava e vibrava com cada golpe. Quando era ímpio, acompanhava UFC, mas depois de Cristo, não consegui mais sem antes ter que me enganar dizendo que não havia nada de errado. Não precisaria argumentar baseando-me nas escrituras para demonstrar que há dissonância entre violência gratuita e cristianismo, apenas apelar ao bom senso já seria o bastante. “Então é pecado assistir a isso?”, não sei...pra mim é. Paulo deixou claro que há pecados que são relativos. Em Romanos 14: 5-18 ele escreve que para uns comer carne, beber vinho e guardar certos dias é pecado, para outros não. Ora, beber vinho, comer carne e guardar certos dias eram atividades vinculadas a festivais e faziam parte, assim como fazem hoje, da rotina daquela gente. Para mim está claro que há duas categorias bem distintas de pecados (assim como também havia para os cristãos primitivos): pecados objetivos e relativos. É sempre errado estuprar e adulterar, mas nem sempre é pecado beber, fumar, frequentar certos lugares, etc. Por exemplo, as denominações mais pentecostais, e algumas mais tradicionais, vão dizer que certas roupas nunca devem ser usadas (biquínis, calças...), certos hábitos nunca devem ser adquiridos (assistir a TV, ir ao cinema...), que cristão não escuta nem toca música “mundana” – como se fosse possível fazer música de outro mundo! Eu sei, ora, já fui assim! Basta pegar um texto meu mais antigo para perceber esses traços mais categóricos e conservadores.

Mas eu estava errado a pensar assim como muitas e muitas igrejas pregam? Não. Veja só: “Um faz diferença entre dia e dia, mas outro julga iguais todos os dias. Cada um esteja inteiramente seguro em sua própria mente. Eu sei, e estou certo no Senhor Jesus, que nenhuma coisa é de si mesma imunda, a não ser para aquele que a tem por imunda; para esse é imunda.” (Romanos 14:5 e 14). Não estamos falando de pecados óbvios, objetivos, mas de diversão, costumes e hábitos nos quais o pecado é apenas potencial. Então com isso dito, quero voltar ao caso do UFC. Não sou muito propenso a colocar uma luta de UFC na categoria de pecados relativos por razões um tanto quanto óbvias. Aliás, vale lembrar que os cristãos primitivos diziam que o assistir gladiadores no coliseu era pecado para morte, ou seja, pelo qual nem se deveria orar por perdão (1 João 5:16-17). Assim, não consigo conciliar um espírito manso e pacificador, do qual Jesus falou, com alguém que se deleita e consome violência sem remorso.

Por isso digo: pequei. Pequei contra minha consciência. Trouxe sobre mim não o julgamento e a condenação de Deus, mas a minha própria destruição. Não é Deus que sofre por esse meu pecado, mas o meu caráter. Em Batismo e Plenitude do Espírito Santo, John Stott cita um provérbio antigo que diz assim: “Semeie um pensamento, e você colherá uma ação; Semeie uma ação, e você colherá um hábito; Semeie um hábito, e você colherá um caráter; Semeie um caráter, e você colherá um destino.”. Quem se expõe à violência imuniza sua indignação contra ela e se torna incapaz de se escandalizar.

É uma lástima ser miserável! Mais lamentável ainda é não admitir ser miserável, pois aí se acrescenta a tal condição auto ilusão. Mas ainda pior que ser um miserável iludido, é ser demente. Como já disse, esse é o que voluntaria e conscientemente abaixa sua guarda para ser golpeado pelas imundícias do seu coração (como fiz com o UFC!). Tal homem, como Jesus disse, é o que bebe seu próprio vômito. Embrulha meu estômago imaginar o exemplo de Jesus, mas pense: vomitar é ruim, mas voltar a comer seu vômito é loucura. Ainda pior que ingerir seu vômito é desejar fazer isso! Que demente é o homem que deseja saborear seu vômito! É assim que Jesus descreve o homem que volta àquilo de que foi liberto.  

O que é pior: sofrer um acidente ou desejar causar um? O que é pior, pecar ou desejar pecar? Há vezes que nos acidentamos com pecados, mas também há vezes que matutamos “acidentes” com outros. Às vezes não tenho a intenção de pecar, mas peco. Outras vezes peco deliberadamente. E para falar a verdade, já não sei até que ponto a ação vale mais que a intenção, e vice versa. Óbvio que poderia pensar em vários exemplos onde a ação é o que vale, mas da mesma maneira poderia pensar em objeções onde a intenção contasse mais. Creio que para entender melhor isso deveria fazer uma distinção entre as palavras “vontade” e “desejo”, pois apesar de sinônimas de acordo com o dicionário, possuem diferentes significados no léxico cristão. A nós parece mais que a vontade está associada à consciência, enquanto o desejo aos humores e apetites.

Logo, a vontade é a força que dobra o desejo.

Por exemplo, quando meu desejo é contra mim, minha vontade deve subjugá-lo; se me apetece o pecado, a vontade o crucifica, é isso que foi dito a Caim quando desejou o mal contra seu irmão (Gênesis 4:7). Em outras palavras, quando quero algo que não convém querer, devo querer não querer. Muitas vezes não quero querer o que quero e quero querer o que não quero.

Não há nada melhor que ter a vontade aliada do desejo. Quando o meu desejo também é a vontade que deveria ter, alegria e satisfação logo seguem – e é aqui que a verdadeira alegria do cristão reside: não apenas em gozar dos frutos das escolhas certas, mas em ter desejo de escolher o que é certo! Por exemplo, tenho vontade de orar todas as noites, mas nem sempre sinto desejo em querer orar! Às vezes penso “Saco, orar!”, veja que nesses casos escolhi orar, tive vontade de orar, porém meu prazer, meus desejos não estavam ali! Já, há vezes em que penso “Que bom, orar!”, e quando isso acontece, meu desejo é também minha vontade de orar! Quem disse isso bem foi o filósofo Mario Sérgio Cortella quando disse que há certos princípios que usamos em nossas vidas:

- Existem coisas que eu quero mas não devo;

- Existem coisas que eu devo mas não posso;

- Existem coisas que eu posso mas não quero.


E que, finalmente, se tem paz de espírito quando aquilo que você quer é o que você pode e é o que você deve. Então, se quero, posso e devo orar, satisfaço-me ao orar. Já no caso do UFC, queria e podia, mas não devia, logo, seguiu a culpa, que me levou ao arrependimento, que me forçou a produzir frutos verdadeiros de um homem arrependido.

Há pessoas que podem assistir a combates desses e partilhar da paz do Espírito? Não sei, e que a consciência de cada um testifique sua sinceridade e amor à paz de Cristo, mas eu não consigo.

Mas quero ainda falar sobre vontades e desejos.

Quando era neófito na fé, domava meus desejos a partir da minha vontade de fazer o que era certo, então apesar de ter saudades de pecados e desejá-los ardentemente, tinha a vontade de não os praticar. Meus desejos eram contra minha vontade, mas, ironicamente, meu prazer estava em não ceder aos desejos, e sim em concordar com a vontade de ficar longe deles. Afinal, do que adiantava ceder a desejos que me trariam culpa? Sempre pensei que para haver prazer genuíno não poderia haver culpa. Por acaso não é burrice gozar daquilo que te faz sofrer? Sei o quão terrível é pisotear a consciência para ter seus momentos; de ir contra aquilo que se acredita para ter aquilo que tanto se deseja. Não seria isso deixar o desejo ganhar da vontade?

É a partir da vontade de ter desejos santificados que se criam hábitos que nutrem paixões que produzem desejos legítimos. Em outras palavras: tendo vontade, fazemos. Fazendo, acostumamo-nos. Acostumando-nos, gostamos. E gostando, desejamos. Consequentemente, harmonizamos e aliamos vontade a desejo. Resultado: satisfação.

Os desejos podem ser uma benção ou uma maldição. Desejo é aquilo que nos apetece, dá água na boca e promete prazer sem igual, assim, se esses concordarem com a vontade de fazer o que é certo, que mais poderia pedir a Deus?

Espero que as igrejas saibam ensinar isso aos fieis, pois esse papo arbitrário de “pode” e “não pode”, além de ser extremamente relativo, cria paranoia e, reprimindo impulsos que podem ser redirecionados, gera mais culpa e descontrole do que domínio próprio e virtude.

Guilherme Adriano

Ps.: Para quem ainda não assistiu, o curta cristão A Diretoria é um perfeito exemplo de como a vontade e o desejo ajudam e atrapalham. A alegoria é muito inteligente. O filme é uma reunião entre a Mente, o Coração, a Vontade, a Memória, o Sentimento e a Consciência para decidir se se convertem ou não a Cristo.

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