Devemos perdoar quem não se arrependem?

(Atualização 02/04/2017 Como todo ser humano, mudei de opinião a respeito do assunto, no entanto, fica o texto como marco de como pensava - e como muitos protestantes ainda pensam. Acredito que tudo que escrevi, li e referenciei nesse texto pode ser refutado com apenas duas frases de Jesus. Hoje entendo que Jesus perdoou quem não se arrependeu, e fazendo isso, conseguiu fazer o que pensávamos que Deus, na teologia, não fazia: perdoar todos livremente. Mas siga com a leitura e entenda como é coerente pensar o contrário. Há espaço para diferença de opinião na igreja, mas não há espaço para falta de perdão. Penso que devemos perdoar mesmo se não acreditamos que devemos perdoar. Enfim, eis o texto de 2011 quando ainda pensava em Deus em categorias da reforma protestante)

Texto de 2011: 

Deus deseja o bem a todos, até mesmo a malfeitores não arrependidos? Sim. De acordo com a Bíblia Deus deseja o bem de todos e quer que todos se arrependam de seus pecados, voltem a Ele, sejam curados e transformados pelo Seu perdão e tenham vida eterna; Ele faz o sol nascer sobre o justo e o injusto, mesmo quem não é filho pode desfrutar da graça d’Ele.

Deus perdoa quem não se arrepende? Não. Apenas àquele que se arrependeu é concedido perdão divino, salvação e restauração.

Deus pune o malfeitor? Sim, mas não aqui nem agora. Ele ainda está dando tempo para que o número máximo de pessoas se arrependa e se volte a Ele. Deus age de maneira paciente e amorosa para com todos, assim possibilitando a todos tempo para se arrepender. Mas, de acordo com as Escrituras, há um prazo para essa paciência. Um dia haverá um acerto de contas.

Então com esses fatos concluo o seguinte: Devemos perdoar as pessoas que não se arrependeram do mal que nos fizeram? (pergunta complicada não?) De acordo com a lógica do perdão divino, não, perdão só existe quando há arrependimento, todavia devemos estar sempre dispostos a perdoar qualquer que seja o pecado, e ter um coração sempre disposto a se livrar da raiva; nunca maquinando o mal contra o outro, mas deixando a retribuição e a justiça a Deus e dando espaço à reconciliação. O amor (no sentido de cuidado e não de afetividade), a misericórdia, a paciência e todas as disposições necessárias para que haja uma reconciliação entre agressor e agredido devem estar em nossos corações, mas até que haja de fato arrependimento da parte do agressor, não pode haver perdão nem reconciliação alguma. Nicholas Wolterstorff, professor de teologia filosófica da Universidade de Yale, diz no livro Jesus e a Filosofia

Jesus não diz que devo perdoar meu inimigo, mas sim que devo querer o seu bem. O inimigo não se arrepende do mal que me fez, portanto ainda é meu inimigo. Ainda tenho raiva dele. Como ele não se arrepende, não há distância o suficiente entre seu ato e seu sujeito para que eu supere minha raiva. Posso fazer isso apenas se esquecer o que ele me fez – e esquecer não é perdoar. Mas devo querer o seu bem – amá-lo. Óbvio que isso é um caminho difícil de trilhar: querer o bem-estar de alguém de quem tenho raiva. Jesus recomenda trilhar esse caminho.

Contudo, mesmo não havendo arrependimento da parte do agressor, devemos abrir mão do nosso direito de retaliação e vingança – e não de justiça nos casos mais graves – e retribuir o mal com o bem, agindo amorosamente e sendo paciente, para que através de nossas atitudes e disposições, o agressor se conscientize do mal cometido, envergonhe-se, arrependa-se, humilhe-se e peça perdão.

Nos casos mais graves a justiça e o perdão devem andar juntos. Mesmo depois do assassino ter sido perdoado de seus crimes, perante Deus e perante suas vítimas, ele deve ser punido pelo bem da sociedade. Sua punição não é vingativa, mas é para a proteção da sociedade. Mesmo sendo perdoado ele ainda pode ser uma ameaça social e ter uma recaída e cometer mais crimes, portanto diante de Deus e de suas vítimas se houver arrependimento haverá perdão e libertação, mas perante a sociedade deve haver punição para assegurar a boa ordem. 

Deduzo que embora o perdão seja incompatível com a punição retaliativa, não é incompatível em princípio com a punição para assegurar a recuperação, a proteção da sociedade e o impedimento de outros delitos. – Jesus e a Filosofia, p. 238.

Amar o inimigo e retribuir o mal com o bem não significa não poder se defender. Se o Reino de Deus é o lugar onde, de acordo com a Bíblia, habita a justiça, como poderia Jesus, sendo seu maior divulgador, ter ensinado e propagado a injustiça tirando dos seres humanos a possibilidade de se defender? Se o Reino de Deus é um lugar da onde aqueles que forem privados serão punidos, como então Jesus pode ter pregado e incentivado a impunidade? O Reino de Deus, como Jesus o pregava, não é uma forma de governo estatal, mas de governo interno do indivíduo. Jesus disse que o Reino de Deus está em nós, e não que é uma alternativa para substituir a constituição e o código penal. Aliás, de acordo com a lei dada através de Moisés, há crimes que são severamente punidos e lugares de confinação para criminosos (cidades de refúgio). Cristo concordava com toda essa lei, mas proibiu a vingança e a retaliação. Não cabe ao homem fazer justiça, mas sim ao estado. Jesus tirou das mãos de indivíduos isolados o poder de fazer justiça. Israel tinha leis punitivas mui severas, e Jesus concordava com elas. Israel tinha juízes e tribunais, e Jesus concordava com isso. Deus (o pai) estabeleceu penas (até de morte) que reprimissem a injustiça e a violência, e controlassem uma sociedade de homens maus, pois afinal, Ele estava lidando com seres humanos rebeldes e odiosos; Deus (o filho) veio para implantar o Reino de Deus em nossos corações, e assim transformar indivíduos e não estados. Assim aqueles que persistem em sua rebeldia e crimes sofrem as devidas consequências, mesmo depois de terem sido perdoados.

O que Jesus fez foi separar a justiça da vingança cega; estabelecer um governo interno – que estaria no homem (Reino de Deus) –, onde prevalecesse a misericórdia e a vontade de redimir e reconciliar o agressor, ao invés de retaliar. Nesse Reino interior, a justiça e o perdão prevaleceriam, e não a vingança cega e o ódio. Portanto Jesus assim ensinou que devemos sempre estar dispostos a perdoar e agir com misericórdia e amor para com nossos agressores, mas que também isso não os livra da justiça; isso não tira da mão do estado o poder de punir e encarcerar criminosos que sejam perigosos à sociedade.

Há o governo estatal, e esse foi estabelecido por Javé com leis e regulamentos que punem e reprimem o crime severamente, para controle da sociedade, levando em consideração que os homens não são perfeitos e devem ser freados; o crime deve ser controlado. E há o governo individual-interior, e esse foi estabelecido por Jesus com leis e regulamentos que punem e reprimem nossos desejos e inclinações pecaminosas, levando em consideração que nossas vontades quase sempre são para o mal e devem ser freadas; o desejo do mal deve ser controlado. Alguns críticos da Bíblia geralmente interpretam, propositalmente, que o Antigo Testamento é a forma com que Deus deseja que nos tratemos uns aos outros e o Novo Testamento é como nosso Estado deve ser. É exatamente o contrário. Antigo Testamento: punições e leis que controlam e reprimem são para o Estado. Novo Testamento: leis e princípios que devem ser a realidade interior de cada um. É assim que se aprende em curso de Direito e um curso de Teologia. O decálogo (dez mandamentos) é para governar o estado, e o sermão do monte é para governar o indivíduo. ‘Não matarás’ é uma lei, e quem matar deve ser punido pelo estado. Já Jesus ensinou que devemos ir além do ‘não matar’, ao ponto de nem mesmo desejar o mal, pois aquele que o desejasse já havia cometido o pecado em seu coração. Então se tivermos uma sociedade composta por indivíduos que nem sequer desejam o mal de outra pessoa, teremos uma sociedade excelente, todavia temos que ter leis que nos protejam caso alguém decida não seguir esses preceitos.

O Pai legislou amplamente sobre o estado, o Filho legislou amplamente sobre o indivíduo, e o Espírito é o que concede o amor e a justiça para que ambas sociedades aconteçam da maneira mais perfeita possível.

Creio que o Pacifismo é uma deturpação dos ensinos da Bíblia. Como um cristão disse, geralmente interpreta-se literalmente aquilo que Jesus falou metaforicamente e metaforicamente aquilo que Ele ensinou literalmente. Se criássemos um estado que retribui o mal com o bem teríamos sucumbido ao nazismo e incentivado suas injustiças. Pagar o mal com o bem só funciona num meio cotidiano e individual (e era exatamente o que Jesus estava ensinando). A não-violência de Gandhi é nobre e bonita, mas não funciona num mundo imperfeito. E por mais que Gandhi tenha se inspirado no sermão do monte, Jesus não ensinou a não-violência literal, mas Ele ensinou a que a retaliação é errada e que devemos nos livrar de um coração vingativo; Jesus não falava de uma nova lei para reger o estado, e sim para reger o indivíduo. Quando alguém lhe der um tapa no rosto (ofensa pessoal), ofereça a outra face (Evangelho de Mateus), mas quando uma nação se levanta para guerrear, vá à guerra (Livro de Josué, Juízes, Salmos, etc.). A guerra por justa causa nunca foi proibida. O Antigo Testamente está repleto de guerras, muitas Deus mesmo mandou fazer, e Jesus estava de acordo com elas. Alguém pode dizer que toda a guerra é injusta e que não há exceções, e sinceramente, só diria isso um tolo não vivido e superprotegido. Afinal, responda-me: é certo ou não guerrear contra Hitler? Stalin? É moral uma nação, cristã ou não, se levantar contra um mal que pretende dominar o mundo e matar inocentes? Seria justo não fazer nada diante da injustiça? Será que deveríamos, como cristãos, não proteger nossa família quando um estuprador invadir nossas casas? Será que deveríamos ficar de braços cruzados enquanto uma nação sofre genocídio? Não! De jeito nenhum! A guerra é a última alternativa. Mas se for o caso e não houver outra forma de frear um mal de proporções nacionais, iremos à guerra e lutaremos pela liberdade e pela justiça, assim como muitos cristãos fizeram no passado. Se dependêssemos de cristãos-pacifistas não teríamos a abolição da escravatura nem teríamos visto o fim do nazismo. Se dependêssemos do Pacifismo, Israel não existiria mais, pois teve de se defender contra várias nações. Quando a guerra é necessária ela é por justa causa: para frear um mal de proporções dominadoras. Mas claro, a maioria das guerras não é por justa causa.

Então não podemos tomar por literais e aplicáveis a todas as situações os ensinos de Jesus. Devemos deixar a lei do amor e do perdão em vigor em nosso ser interno e externo, mas a lei da justiça e da punição para o estado. De outra forma não haveria civilização; viveríamos num estado de caos constante onde o tirano reinaria e a injustiça prevaleceria, e assim o Reino de Deus seria rapidamente destruído. O Estado deve proteger a liberdade e a justiça para que assim o Reino de Deus possa florescer nos corações de indivíduos, que por sua vez, influenciarão todo o pensamento de uma sociedade.

Em outras palavras, o assassino pode ser perdoado, mas deve ir para a cadeia. O pedófilo pode ser perdoado, mas deve ser encarcerado e excluído do contato de crianças. Todo pecado pode ser perdoado, mas as consequências desses pecados não podem passar impunes; o perdão sempre pode ser concedido de ambas as partes, de Deus e dos homens, mas a reconciliação nem sempre. Há casos onde o agressor pode ser reconciliado com Deus, mas não com suas vítimas, mesmo tendo sido perdoado por elas. Por exemplo: um pai que teve sua filha assassinada pode perdoar o assassino de sua filha, mas muito provavelmente nunca vá se tornar amigo dele.

O cristão, assim como Deus, age amorosa e pacientemente para com todos, mas perdoa e se reconcilia apenas com aqueles que se arrependem de seus pecados e crimes cometidos.

Guilherme Adriano

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