Quando a Culpa é do Batman


Em um segmento de seu programa Real Time, o comediante Bill Maher (aquele ateu chato que fez o engraçadíssimo documentário Religulous) criticou Hollywood por ter acostumado o povo americano a pensar que sempre haverá um salvador quando as coisas não derem certo. Depois de assistir ao vídeo em que diz isso, porém, me pareceu claro que os comentários dele não significaram o que a manchete do site omelete deu a entender (leia ela aqui). O propósito do comentário foi o de preparar o palco para a sátira da noite, chamando Trump de Orange Sphincter, o herói que o povo americano elegeu. É improvável que Maher estivesse realmente culpando filmes de heróis de acovardar a nação. Mas se estivesse, não estaria fazendo diferente de Trump com os problemas dos EUA e da Europa: jogando-os no outro (Isis e imigrantes)

A culpa é de Hollywood e filmes de heróis, é do Isis, é do PT, é das drogas, do rock and roll, do comunismo, é dos judeus, é do Islamismo, dos cristãos, da mulher que me destes, da serpente, é do inferno que é o outro. Achar uma vítima perfeita e criminoso ideal é o que se faz desde sempre - leia René Girard. Esse mecanismo de culpar uma vítima para o bem da sociedade é o que chamamos de bode expiatório (entenda a origem do termo aqui). Quando ameaçados, nada mais eficaz do que achar um inimigo em comum e se unir na batalha contra "o mal." Toda sociedade, secular ou religiosa, tem seus bodes expiatórios e objetos de devoção. Esses comportamentos são fenômenos antropológicos, e apesar de se manifestarem mais claramente na religião, não são exclusivos à religião. Um nacionalismo secular, por exemplo, vai apontar o dedo da culpa para o estrangeiro e o dedo da devoção ao seu líder supremo (Trump e Isis? Bolsonaro e PT?) Já uma religião conservadora vai acusar a heresia, o diabo, o mundo e mais tudo que se entenda como ameaça aos costumes da congregação. Fazendo assim, toda animosidade e ansiedade da multidão enfurecida encontra uma vítima perfeita em quem derramar sua justiça (lembra de Jesus?)

Mas voltando ao assunto dos heróis, não é de hoje que a arte é feita de bode expiatório. Na subcultura do cristianismo, sabemos quanta paulada a música, games, filmes e literatura levaram dos púlpitos puritanos, que culparam esses de perverter a mente das crianças tornando-as violentas - irônico, no entanto, que contar-lhes historinhas de muros caindo em pessoas, fazê-las colorir páginas do extermínio da raça humana pelo dilúvio e ensiná-las a desenhar as dez pragas não tem nada de violento, tem? 

Quem me conhece sabe que sou grande defensor das histórias em quadrinhos e cultura do super-herói. E o sou pelo motivo diretamente oposto ao que Maher mencionou: na maioria, as pessoas sabem a diferença entre religião e super-herói (duh!), e enquanto pode se argumentar extensivamente que a primeira cria uma cultura dependente de salvadores, a segundo é claramente fantasiosa e estimula o leitor a aspirar ao heroísmo ele mesmo. 

Maher, assim, está bem equivocado quando diz que tanto heroísmo nas telas deixa o telespectador desejoso de alguém que faça por ele o trabalho duro. Pelo contrário, depois de jogar Marvel Lego Superheroes por 1 hora e conversar sobre heróis com as crianças de quem tomo conta às vezes (gêmeos japoneses de 4 anos de idade), não há quem os segure de querer ajudar seus inocentes e indefesos brinquedos das ameaças de outros brinquedos. 

Apesar de diferentes nomes, a cultura do super-herói sempre esteve conosco. Hoje, são super-heróis. Antigamente, eram guerreiros, messias e semideuses. Hércules, Salomão, Aquiles, Beowulf, Thor (o original, não o Toddynho), Jesus, Superman, etc. Literariamente falando, são os personagens que ajudaram a humanidade a se levantar ao desafio de mudar o mundo trazendo justiça (pobres, órfãos, viúvas, idosos, crianças e injustiçados sempre foram o alvo do heroísmo, seja religioso, secular ou fantasioso) Os quadrinhos e o heroísmo ajudam a seus leitores, crianças no geral, a ter um senso de moralidade mais apurado e desenvolver a ideia do altruísmo. 

O idealismo platônico, para mim, é uma boa base filosófica para cultura do super-herói: existe o mundo real e o mundo ideal, o das sombras e o da luz. O herói é aquele que se prepara e transpõe o abismo que os separa, levando luz às trevas, bem aonde há o mal, e assim, faz triunfar a justiça recuperando o bem primordial. 

Se você é pai ou mãe, saiba que há muita coisa boa em incentivar seus filhos à leitura de quadrinhos. Crianças engajadas à arte são crianças que cultivam o gosto pela criatividade. Então da próxima vez que você ouvir seu pastor, amigo ou comentarista favorito (como o Maher é o meu) pregando contra os males e perigos dos filmes de super-heróis e fantasias demoníacas, respire duas vezes, conte até 10 e chore, porque mudar a cabeça de alguém que pensa assim é tão fácil quanto fazer um fã da Marvel entender o porquê de Batman v Superman ser artisticamente superior a  qualquer filme da Marvel. 

Guilherme Adriano

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