Uma prévia do livro que está quase pronto!




[Este é um capítulo do livro que não sei se já está pronto! Perdoem os eros hortograficos...:) ] 
TEOLOGIA QUE SABE SEU LUGAR
 
Junto a um mundo que não para de encolher e de um universo que não para de se expandir, a teologia também muda indefinidamente, e no fim, entende que o que tenta entender é grande demais para ser entendido. Afinal, o que ela estaria tentando compreender senão o incompreensível? Ou como busca deslumbrar o mundo espiritual se ainda vislumbra o natural? Mas acredito que a melhor ilustração de como a teologia deveria ser abordada está na história que se conta de Agostinho de Hipona – supostamente um sonho seu – e seu encontro com o menino na praia:

Conta-se que Agostinho andava em uma praia meditando sobre o mistério da Trindade: um Deus em três pessoas distintas. Enquanto caminhava, observou um menino que portava uma pequena tigela com água. A criança ia até o mar, trazia a água e derramava dentro de um pequeno buraco que havia feito. Após ver repetidas vezes o menino fazer a mesma coisa, resolveu interrogá-lo sobre o que pretendia. O menino, olhando-o, respondeu com simplicidade, estou querendo colocar a água do mar neste buraco. Agostinho sorriu e respondeu-lhe, “mas você não percebe que é impossível?”. Então, novamente olhando para Agostinho, o menino respondeu-lhe: “ora, é mais fácil a água do mar caber nesse pequeno buraco do que o mistério da Trindade ser entendido por um homem!”. E continuou, Quem fita o sol, deslumbra-se, mas quem persistisse em fitá-lo, fica cego. Assim sucede com os mistérios da religião: quem pretende compreendê-los deslumbra-se e quem se obstina em perscrutá-los perde totalmente a fé.[1]

Augustus Nicodemus Lopes, ministro presbiteriano, mestre em Novo Testamento e doutor em Hermenêutica e estudos Bíblicos, em uma palestra[2], disse que fazer teologia é complicado, porque as contrariedades dela são como linhas paralelas que parecem se encontrar apenas no horizonte inalcançável, e não importa o quanto mais avançarmos, as linhas continuarão paralelas e biblicamente verdadeiras. Ele dá os seguintes exemplos: Como pode sermos livres e predestinados; Deus ser um e três; Jesus ser homem e Deus? Qualquer resposta que dermos a essas perguntas será especulação, mas isso não quer dizer que será inútil ou errado tentar, apenas que nunca teremos meios de comprovar o que afirmamos a respeito de coisas assim. Será que estou dizendo que a Bíblia não responde as maiores questões da teologia? Ou que não podemos ter certeza da teologia que afirmamos? Claro que não estou dizendo isso. O que estou realmente dizendo é que certos assuntos, por exemplo a Santíssima Trindade, são mistérios para os quais não há explicação definitiva. Aceitamos porque é isso que Jesus revelou, no caso, que Ele é Deus, o Pai também e o Espírito também, e os três são um, e só há um, mas há três, e havendo três, formam um que não é três. Há inúmeras obras sobre o assunto, mas no final, não importa quantas bibliotecas forem escritas sobre o mistério da Trindade, ainda será um mistério. Não nos cabe sermos os anatomistas de Deus, nem de perscrutar a eternidade para entender a relação da soberania e da responsabilidade humana, nem afirmar categoricamente qualquer outra coisa a respeito dos mistérios do mundo espiritual a não ser os que Jesus deixou claro, pois o único que conhece Deus nesse nível e pode fazer teologia assim profunda é o Espírito (1 Coríntios 2:11).
A teologia é o estudo de Deus e do que revelou. Ora, Deus não é objeto de estudo, logo, estudar Sua natureza e desígnios é impossível. Há anos temos discutido natureza humana e ainda não temos um veredito; ainda não sabemos se nascemos tábulas rasas ou com natureza definida ou se um e outro ou se nem um nem outro. As psicologias, psicanálise, neurociências e outros estudos da mente humana em sua totalidade vêm revelando coisas sobre o homem que nunca antes pensávamos ser verdade ou até possível. A complexidade da mente e da personalidade é assunto que ocupa prédios inteiros de livros. Mas estou falando de homens, de anthropos, que são observados, analisados, examinados e descritos, e nada a não ser complexidade, complexidade e complexidade é o que encontramos. Homens não entendem nem homens! Como vão entender Deus? Se pouco compreendemos das motivações de um ser humano, vamos compreender as de Deus? O que cogitamos e deduzimos da natureza de Deus é a partir do que foi revelado, e Jesus revelou o caráter do Pai, e não a essência d’Ele; revelou que Ele é o caminho, e não quais eram os alicerces desse caminho; revelou que há outra criação chegando por essa ter se corrompido pelo pecado, e não como essa criação se deu, se em sete dias literais ou não, se pela evolução de espécies ou criação especial, se do nada ou de algo preexistente, etc., ou como o pecado deveras entrou nela, por um fruto, pelo sexo, pela rebeldia, etc. Esses assuntos são especulações teológicas, nada mais. E a teologia que vivemos não deve se ocupar tanto de abstrações e teorias quanto de práxis e reflexão. Veja que a teologia de Jesus é simples, é quem me vê vê Deus, e o que de Deus se sabe, por mim é manifesto (João 12:45 e 14:8-10). Jesus se preocupou com o caráter e a solução, não com as explicações dos mistérios, assim, fez mais que pensou e amou mais que teologizou. Como seus adoradores, devemos fazer o mesmo.
Mas por que fixo tanto nesse ponto da teologia? Por que no passado, os cristãos se mataram por questões teológicas! Por exemplo, o reformador João Calvino sentenciou um homem à morte por não acreditar na trindade e humilhava publicamente quem duvidasse de sua teologia[3]. Sebastian Castellion, um dos críticos de Calvino de sua época, escreveu que “matar um homem não é defender uma doutrina, é matar um homem”. Isso é tão tragicamente ridículo quanto o que se conta de Pitágoras e seu aluno Hippasus. Pitágoras cria que tudo no mundo era racional, e toda sua filosofia era baseada nesse princípio. No entanto quando seu aluno Hippasus provou que a raiz quadrada de 1 era irracional, foi morto por afogamento, dizem algumas fontes, a mando do próprio Pitágoras. Sentenciar alguém à morte por ser herege é tão ridículo quanto matar um homem por causa de contas matemáticas. Calvino e Pitágoras são dois exemplos de como convicções podem ocupar o lugar reservado a Deus. A paixão desses homens por suas ideias era maior que aquela ao seu próximo. Eles são, para mim, exemplos de homens que deram demasiada importância ao que estudavam e colocaram seu estudo no lugar errado, no trono de Deus.
Quero usar Calvino e Pitágoras como exemplos de o que não fazer com a teologia e filosofia. Quando a teologia perde theos do foco, inquisições, escolasticismos e guerras religiosas acontecem e a prática da virtude e a reflexão da vida cedem lugar a imaginações teológicas do tipo “quantos anjos podem dançar no topo de uma colher?”. Quando a filosofia perde a sophia de vista, sobe as escadas da reflexão alto demais e se perde no andar das abstrações. Ambas são inúteis. A teologia deve se colocar em seu lugar devido: sob os pés de Cristo e na mente dos santos. Devemos sempre lembrar que a teologia é uma ciência mais especulativa do que objetiva, assim como são todas as outras ciências humanas, no entanto esse é ainda mais, pois lida com revelações de Deus.
Outro problema que a teologia enfrenta são as mudanças de paradigmas de entendimento do universo e do homem. Essas mudanças afetam profundamente como fazemos teologia e o que afirmamos a respeito de Deus. Por exemplo, na idade média se acreditava que o sistema solar era geocêntrico e o universo era hierárquico, ou seja, que todos os planetas orbitavam em torno da terra e todos os corpos, celestes e terrenos, tinham uma hierarquia estipulada por Deus: a pedra cai quando a soltamos porque Deus definiu seu lugar como sendo o solo; que desastres naturais são castigos divinos; que o rei e o plebeu nasceram para serem rei e plebeu; que o homem que nascia sem uma perna, assim nascia porque Deus assim o queria, logo, todos e tudo ocupavam o lugar no universo que Deus definiu. A visão cristã da vida era muito determinista – e dada a luz que tinham na época, não podia ter sido outra. Mas então vieram as revoluções científicas, médicas, psicológicas e sociais e demonstram que nascer com defeitos físicos não é vontade divina, e sim falha genética; que a terra não é o centro, mas o sol; que disposições mentais podem ser socialmente construídas; que situações socioeconômicas dependem de formas de governo e sistemas econômicos; que catástrofes naturais tinham consequências naturais, previsíveis e manipuláveis, enfim, que Deus não está diretamente envolvido na maneira como as coisas procedem. Consequentemente, o cristão parou de ver o rei como alguém divinamente escolhido; parou de ver a situação humana como a vontade arbitrária de Deus e de entender o universo como divinamente governado. Apenas algumas décadas de descobertas científicas literalmente acabaram com séculos de teologia.
A ciência estuda o mundo. A teologia estuda o criador dele e seus propósitos com ele. Logo, se o paradigma científico muda, o teológico obrigatoriamente também. Então, sociologicamente falando, conforme o mundo encolhe e, cosmologicamente falando, o universo se expande, teologicamente falando, os joelhos se dobram e as línguas confessam a dependência e pequenez do homem quando esse clama como Davi, “Quando vejo os teus céus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas que preparaste; Que é o homem mortal para que te lembres dele? e o filho do homem, para que o visites?” (Salmos 8:3-4). Gradativamente, certezas teológicas se transformam em questões teológicas. Pelo menos assim, creio que no coração do crente a arrogância do entender Deus cede lugar ao depender d’Ele.
Confiar sua vida a uma determinada interpretação teológica de Deus é perigoso, pois segundo o Dr. James Brown em Quando Deus Não Faz Sentido, “não há maior sofrimento para um ser humano do que construir todo um modo de vida baseado em certa compreensão teológica e depois [...] ver tudo desmoronar.”. Deus não é limitado pela nossa compreensão d’Ele. Ele nunca caberá em nossas teologias como a água do mar não coube na tigela do garoto do sonho de Agostinho. Quem confia sua vida em determinada interpretação da Bíblia corre o risco de se magoar de tal maneira a nunca mais querer vir a dobrar seus joelhos e orar por rancor a Deus.
Logo, não era de se surpreender que a incerteza e o desespero fossem parte do pensamento cristão ocidental dos séculos XX e XXI, pois este, olhando para o passado, chora os rios de sangue que foram derramados por causa de “certezas” teológicas que desmoronaram.
Acredito que hoje o que podemos dizer de certeza é que não sabemos e não saberemos tudo aquilo que mais nos consolaria saber; não sabemos se Deus vai curar, se vai ajudar, se vai inspirar, se vai responder, se vai salvar, se vai prover, etc. Sabemos que o que faz – quando faz! –é imprevisível. A mim me parece que a teologia, olhando para a história, tem sido um grande instrumento de Deus para humilhar a arrogância cristã de achar que é possível entendê-lO. Em outras palavras, a teologia cristã tem nos ensinado que não é possível fazer teologia coerentemente, pois o objeto de nosso estudo é nada mais nada menos que o próprio Deus! E não digo nada de novo ao afirmar isso, pois já no século XII Pedro Abelardo acidentalmente havia demonstrado a impossibilidade de se ter certezas teológicas a respeito de Deus com sua obra Sic et Non, onde põe em confronto mais de 150 posições doutrinárias consideradas ortodoxas, de pais da igreja, apologistas, teólogos e escritores eclesiásticos, que se contradizem. Creio que a verdadeira teologia, como escreve Abelardo, é aquela que é “lida com liberdade de julgamento ao invés de obrigatoriedade de fé”[4], e que, nas palavras do professor de teologia histórica da Universidade de Oxford Alister McGrath[5], “nos oferece a oportunidade de aprofundar o entendimento e o apreço por nossa fé” sem limitar Deus a esquemas teológicos. Enfim, teologia verdadeira é a que serve Deus com a mente sem limitá-lO a ela.


[1] Retirado de pesquisas em blogs cristãos.

[2] A parte da palestra em que Augustus faz esses comentários pode ser achada no youtube pelo nome Predestinação x Livre Arbítrio - Augustus Nicodemus.

[3] De acordo com Ide Becker em Pequena História da Civilização Ocidental, Calvino era visto como um tirano pela população, que não tinha liberdade de se manifestar contrariamente a suas doutrinas.
[4] Peter Abelard, Yes and No, the complete English translation of Peter Abelard’s Sic et Non, tradução livre do autor, p. 22.
[5] Definições retiradas da obra Teologia Para Amadores

[Termino o livro ainda esse ano!] 

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